Os meus preferidos são estes… os que chegam, se apropriam e dizem coisas que eu não sei. O principal sentido é a arte não fazer sentido nenhum. É que ela nos quebre a métrica do sensível, é que ela nos deixe atravessar dimensões, é que ela nos permita ser sensacionismos novos, intercecionados com cheiro de «Pauis» – de Paulismo. Obrigada, Deuses. Obrigada, Céu. O único lugar verdadeiro da Arte.

M. Augusto
Amo-te, não te quero. Garrett começa assim um poema – ou talvez seja ao contrário e eu tente legitimar a minha contradição. Creio que se chama “Adeus!” ou será “Não te amo?”. “Amo-te, mas não te quero” parece-me adequado agora. Amo-te como Deus quer. (Eu já escrevi isto). Outra vez. Quando Deus, o da coluna, quer que eu vá, eu vou. Não pestanejo face ao cosmos. Submeto-me à la Reis. Helénica que sou.
Escrever cheira-me sempre a invencibilidade.
(porque me vulnerabilizo… e saber que sou vulnerável liberta-me do aço de não me poder desfazer. Estar pronta a desfazer-me… isso pode ser liberdade)
Não olho para trás. Doem-me as costas, porque me quero voltar. Mas não posso. Amo-te, mas não te quero. E vil sou. É Garrett quem diz (e eu também), porque quer, mas não ama.Convoquei Garrett para desculpar a minha incoerência. Ainda assim… ele queria, só não amava. E eu amo-te, mas não te quero. E sei que o “in” eu invento… porque não há nada de mais coerente agora do que te amar, mas não te querer. Quero-te livre. Isso não é possível comigo, não agora.
(Tempo que passa entre a cama de um hospital e tu)
Escreve-se como salvação. Escreve-se para pedir redenção, paz, à vida. Escreve-se, porque é a única forma de se ser resgatado. Escreve-se na esperança de se ser salvo… que o teatro das Letras nos salve do escuro do mundo. Escreve-se na esperança de Ver Luz. A Luz que nós Somos. O acordeão em tinta pode ter esse poder… pelo menos, que me pinte no chão agora… os estilhaços líquidos de mim a negro a cair, agora.
O poder de ser eu, de me lembrar de quem Sou. É por isso que se escreve nestas horas, de ponteiro invertido, de relógio engolido no tempo líquido das paredes que não se distinguem.
Porque eu deixei lá os olhos, a caixa de música da minha boca e a água dos meus dedos. Tenho frio. Nos braços. Por dentro. Amo-te, mas não te quero. “E vil sou, porque não te amo”, dirias… e Garrett também.
A culpa assombra sempre quem quer ser a Verdade, porque a verdade não é bem-vinda no mundo. A verdade é culpada, má, de sótãos escondidos.
Assusta-me não saber o caminho. Amo-te, mas não te quero. A ti, à lentidão dos teus passos, à dor que ensaiámos juntos, quando o pano já tinha descido. E vou. Nas asas dos pés. Não vejo.
Amo-te, mas não te quero. Para sempre. 7
(Poderia terminar, mas entre a casa de banho, a cama do hospital e o sofá, volta. Volta a ti; o 7 é um elemento que se escreve por si, agora na transcrição… e porque somos fiéis ao acaso, mantemo-lo.)
Tua, dentro… perdida num elo qualquer do teu intestino, é isso que eu sou. Pronta a sair de ti, a ser expelida. Entrei-te pelos olhos e cravei-me nas tuas ancas. E agora? Mera pedra incómoda, áspera a ser, no teu intestino. E entrei pelos teus olhos, pelo brilho deles. Eugénio dizia que já não havia nada que lhe pedisse água no aquário do corpo a que eu chamo os teus olhos… mas os teus, os teus olhos pedem-me tanta água… A mim. A mim. A mim! E sal e água doce e tudo o que te quero dar. Adeus, para sempre adeus, diria Garrett.
(Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração. In “Adeus” de Eugénio de Andrade)
Isto é mentira. Todo o poema de Eugénio é mentira. Porque digo o teu nome e tudo me estremece aqui dentro.
E legitimamos a dor. Achamos que é para isso que ela serve… escrever, criar, fazer arte. Amo-te, mas não te quero. Ou convenço-me disso. Mas não te quero. Ou convenço-me disso.
(tempo e um espelho numa casa de banho de hospital)
Dóis-me no peito como a harpa, sem anjos, que te invento… o amor, os dedos molhados, o psiché inventado de um quarto que nunca houve. O tempo não há. E acho que te invento. Talvez não tenhamos sido nada. Talvez eu te pinte agora em Rembrandt quebrado… perdoado, simulado a algodão doce. Não sei. Sei que te amo… que me dói… que dizem que não dói, só porque não quero – imbecis da inconsciência. Só porque não sei viver sem mim, sem ser eu. Porque exercer a minha verdade é levantar a espada, arrancar as árvores e vencer o mundo… descansar no sol. Mesmo que eu o invente… num cartaz, numa mesa metafísica qualquer… Amo-te, mas não te quero.
Vou embora de ti, por agora.
Daqui, (…).
Adeus, para sempre Adeus, quer dizer, fica com Deus, para sempre com Deus.
(tempo e um espelho)
Sou heroína de uma banda desenhada sem livro. Só eu conheço o quadrado invisível, suspenso, que cai do céu. (As pessoas nunca percebem os meus desígnios… e eu?)
Não sei para onde vou, mas vou viva… nestes pés, nestas mãos a mexer mais… Não sei a verdade, mas sei que sou eu. Sei que tenho uma história a cargo… sei que ganho asas nos braços e que o arrepio da liberdade me chama, me pica a nuca como um pássaro… e a coluna toda.7
Sei que sou eu. Heroína com branco, em fato especial, do tecido de que as estrelas são feitas.
Sou brilhante, estalactante como elas… fria e em bicos de estalactite em trópico chuvoso, que se desfaz. Não sei quem sou. Mas sei-me neste fato, de rainha das galáxias que não conheço. (Tenho – Sou – um reino que não conheço).
Amo-me assim… bonita, poderosa, invencível como eu sou, no meu fato das estrelas. Tenho olhos de âmbar e o cabelo mais amarelo. Levanto as pernas, sou imponente e rápida, num céu que é meu e eu não conheço. Digladio-me por mim e nem preciso. Subo, os meus braços sobem, já não posso parar. Saí do livro do mundo, da Terra e de tudo o que me prendia.
Eu sou Clipsera sem Calipso. Mas amo-te sempre.
E parto deste novo desenho de mim, do meu fato e do meu livro sem quadrados, dos meus braços a voar. E os pés em asas.
(Tempo, uma torneira e um espelho)
Sou rainha das galáxias… voo livre sobre as crateras sem luz… deixo o vácuo. Voo na estalactite de fogo dos astronautas sem nave. Livres, como eu. Lilases em fogo frio como o meu. E voo livre. Com eles. No tecido rugoso lilás das minhas mãos. Carpete de luz que invento. Sou eu, prazer. Rainha das galáxias, a ser. Lá em cima. A ser.
Márcia Augusto #ElasDoAvesso
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