Precisávamos do Covid.
Precisávamos de rever políticas e precisávamos de pôr a nu muita coisa… precisávamos de pensar a sociedade como um todo. Precisávamos de um vírus que nos relembrasse que a nossa condição é igual… um Vírus que atacasse deputados e a senhora do talho. Precisávamos.
E precisamos, sobretudo, de rever o que andamos a fazer até agora… precisávamos de não ter investido o Porto todo no imobililário de luxo e de turismo… para agora não ficarmos sem ele, o Porto… eu não digo já… mas a crise iminente – e diria que inevitável – que isto não provocou, mas acelerou, vai deixar outra vez a cidade a nu… as pessoas que lá viviam, essas que expulsamos e que agora estão a viver em quartos… continuariam no Porto, a embelezar a cidade com o seu olhar tradicional… aquele olhar triste que é “à Porto”, e que é alegre ao mesmo tempo. Matamos o Porto. E eu, sinceramente, tenho a esperança que o Covid, e outras catástrofes que se avizinham, tragam o Porto de volta – ou não “tão de volta” exatamente. Não tenho medo das fachadas abandonadas… tenho medo do que fizemos… tenho medo por termos abandonado pessoas… tenho medo por termos dado Vistos Gold, cujos detentores, quando há uma crise, são os primeiros a dispensá-los, aos Vistos… Quem investiu numa cidade por dinheiro será a primeira a abandoná-la… e é isto que a Gestão Pública não percebe. Ou percebe, mas, naquele momento, faz de conta.
Não tenho medo de catástrofes… tenho medo de que elas não nos ensinem a sermos humanos. E, como ouvi há um ano – e que me serviu como uma luva – praga só vem quando é preciso. Eu não digo que a morte e o sofrimento sejam merecidos… nenhum ser vivo merece sofrer, nem o mais hediondo… mas precisávamos – e precisamos – de ser colocados frente a frente com a nossa condição de grão… frágil, volátil, efémera… afinal de contas, para quê tanta ganância? Para quê tantos prédios a arder – com pessoas lá dentro – para construir hotéis? Para quê vender casas com pessoas lá dentro, porque a Lei vos impede de lhes aumentar a renda? Digam-me… para quê? Estou curiosa para ouvir a vossa resposta… e desculpem-me… mas dá-me um certo gozo ver todo o negócio imobiliário com medo… não gosto de sistemas dente por dente, embora pareça… e talvez seja infantil nisto… Mas a verdade é que não tivemos – e digo tivemos, porque, como está visto, somos mesmo responsáveis pelo outro – qualquer problema em ver pessoas a serem expulsas de suas casas… a única coisa que nos preocupou foi arranjar uma solução para nós… não, não somos ilhas… e se a senhora ao lado corre o risco de ser expulsa, porque paga uma renda “irrisória” ao senhorio, isso não foi só responsabilidade dela… e as coisas não se resolvem a “recuperar” o dinheiro com rendas pagas por turistas ou detentores de rendimentos que não são os “comuns” em Portugal… contra os quais não temos nada, só queremos ter direito à nossa casa. É que se alguém, porque vem de fora, de outro campeonato, diríamos, pode pagar 1000€ por um aluguer e o povo só pode pagar 300€, da mesma forma que numa corrida, todos partem da mesma reta, então na corrida às casas e aos alugueres, isso também deveria acontecer… ou a justiça e o equilíbrio só servem para divertir a alma dos que gostam do desporto? Temos muito a aprender com o Desporto. As empresas também. O mercado imobiliário, um dos mais flutuantes… mais ainda. E mais flutuante, porquê? Não será porque é um dos mercados que mais se aproveita de um direito fundamental – e antes de consagrado na Lei, uma necessidade que ninguém precisa de estudar nas sofisticadas universidades –, para o converter num negócio e extrair o máximo de dinheiro possível de quem precisa de casa para os bolsos dos proprietários? Não será que é por ser um mercado absolutamente animal, onde talvez os leões na selva consigam ser mais “éticos” ou “justos”, porque guiados pela Natureza, ou, pelo menos, inocentes, dada a ausência, tanto quanto sabemos, de racionalidade? Os mercados que mais vão sofrer com a crise são os mercados que vivem e se aproveitam do medo das pessoas, que convertem as suas necessidades em formas de enriquecer ilicitamente… sim, porque o que aconteceu, e continua a acontecer, com as rendas e a venda de casas chama-se roubo (os exemplos são vários… basta pensar no aumento do preço das “máscaras”… o aumento do preço das viagens, quando a data de marcação é próxima à data de partida… se a marcação ocorre numa data próxima da da marcação é porque “precisa” e, se precisa, vamos carregar no preço. Este sistema animal que liga “necessidade” a dinheiro tem que acabar. E espero que o COVID contribua para isso. Não serve para mais nada uma doença, para além de nos matar, do que para nos fazer repensar o modo como vivemos. Qualquer tipo de doença, já agora… a guerra é uma doença social, um conflito entre organismos que lutam para uma resolução).
E são as indústrias do roubo que sofrem com a crise que aí vem. Continuaremos a comprar pão, massa e arroz. Continuaremos a ir à escola… continuaremos a ler livros, físicos ou online… continuaremos a ir ao supermercado… continuaremos a usar roupa… e quando as fachadas do Porto se revestirem do seu cinzento e do seus vidros partidos, lembremo-nos que é assim, porque a cidade foi devolvida, quer dizer abandonada, aos pobres. E, não, não defendo uma cidade destas… defendo um partilha equitativa – não igualitária –, do espaço e do direito à cidade.
Voltando ao COVID-19, a doença veio lembrar-nos do que era essencial… veio lembrar-nos de como um passeio na cidade podia ser um luxo, e nem nos apercebíamos do quão abençoados éramos, quando podíamos parar e ver uma montra… mesmo sem a intenção de comprar. Lembra-nos também sobre a dignidade das profissões… lembra-nos que, definitivamente, todos precisamos uns dos outros… e que sim, precisamos daquele senhor, com ar de escravo, no supermercado… é que sem ele, as prateleiras ficam vazias… sim, sim… já sabemos, é o proprietário que liberta o dinheiro para as encomendas… é verdade… mas dificilmente o proprietário se levantaria às 5 da manhã para encher os corredores (1) que nós, frenética e selvaticamente, roubamos ao cidadão que vem a seguir a nós… já agora, a quem faz isto no supermercado… se morrer, não será de fome. Por outro lado, se olha de lado para quem o está a atender a tossir, permita-me recordá-lo que, provavelmente, enquanto comprador tem a escolha de não ir ao supermercado, mas aquele trabalhador, provavelmente, não tem o direito de escolha de deixar de ir trabalhar… direitos protegidos por lei não significam direitos efetivos… principalmente quando temos um juiz ao barulho, chamado Dinheiro… Esse “ministério” que não possui qualquer poder regulador – que funcione e que controle, de facto, quem o detém.
Voltando ao supermercado, amanhã, o contrato da pessoa que tossiu acaba e, se safar do COVID, precisará de continuar a trabalhar. Antes de olhar para quem tosse como se fosse um leproso, lembre-se que há pessoas que, de facto, não têm escolha. O que os senhores do Estado, e bem, dizem na televisão é muito pouco aplicado no setor privado e, se é, é como medida última… porque, infelizmente, o trabalhador é uma extensão de produto, quando não é o próprio produto… afinal, já todos tivemos que apresentar as nossas “características” numa entrevista de trabalho, como o senhor das televendas apresenta um produto… estamos lá a fazer o mesmo “faço isto, isto e isto. Ligue já, não se vai arrepender”. O pior é que de tudo fazemos para manter um sistema que, está visto, não funciona.
O COVID veio abalar isto tudo… veio pôr a nu o que já sabíamos… e se morrer, morro consolada – não de cônsul –, porque vou numa praga que foi e é necessária. Se não mudarmos a bem, mudaremos a mal. Pois mudaremos.
(1) Ou se o faria, não o faria sozinho.
#ElasDoAvesso(R)
Abaixo uma playlist bem a calhar. 😊
Divirtam-se na Quarentena.
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