Este é um texto feito a quatro mãos… mas ficou tão bom, que quis partilhar algumas partes… Parabéns à Catarina Figueiredo, aluna, que tanto prazer me deu ao poder ajudar na conceção deste trabalho.
“É, pois, também a experiência de um Reis revistado, um Reis pessoano em vida, que, claro está, não funcionaria enquanto homem. Podemos dizer que é com este Reis, que surge, de facto, o “drama em gente”, antes apenas “drama em mente” de Pessoa. Constata-se, pois, pela indiferença e, tantas vezes, sentido atónito de Reis face ao que vê ou vivencia, que a experiência estóica de Pessoa não chegaria para fazer face a este mundo de contrastes. Por outro lado, a educação latinizada e a intelectualidade morta também de nada servem ao mundo sem ação. Este é o Reis de Pessoa em contraste direto com o Reis de Saramago, que nos aparece num hotel e, se quisermos, nasce na bolha amniótica do quarto e da deambulação nas ruas. É lá que vemos o verdadeiro Reis, o Reis de Saramago.
(…)
Podemos, pois, ver que a deambulação geográfico-mental é um passeio com Saramago, que parece tomar-nos pela mão, qual criança de olhos vendados, a ver a cidade, o mundo e a literatura sob uma nova luz, interventiva, subversiva, nova, capaz de reinventar o que foi, desafiando-o, colocando as estacas e até as “palas” da nossa visão em causa. É um livro de abrir os olhos, de olhar e ver o que, à partida, não está lá. É um livro de subverter, é um livro de coragem – a coragem de levantar os “mortos”, os inexistentes, os inventados e até o que os que viveram, fizeram, pela luz de quem está vivo e muito lúcido sobre o que se passa (o narrador). É um livro de liberdade, a liberdade de dizer que Ricardo Reis pode viver, pode ser outro, assim como o mundo, o país, a sociedade, tudo pode ser “outro”, “outrado”, diria Pessoa no seu fenómeno de heteronímia, transformado, tornado novo, morto e ressuscitado para morrer novamente, a favor de uma nova epopeia, enquanto a terra espera, pelo menos, na literatura.”
Sobre “O Ano da Morte de Ricardo Reis”
Catarina Figueiredo e Márcia Augusto
in “Explicações ao Sábado de manhã”
#ElasDoAvesso